Friday, November 25, 2005

O Personagem (conto)

O personagem


Por favor me deixa aqui sentado, quieto a olhar pela janela as paisagens. Não, eu não quero me levantar para andar pelo trem, lembre-se que você me criou manco e que minha bengala caiu quando eu subi no trem. Tudo que você faz é complicar a minha vida. Está bem, você pode fazer de mim o que quiser, pode até me matar de infarte agora mesmo e terminar com o conto, afinal eu sou apenas uma personagem e você o escritor.
Recuso-me a contar a minha vida ao leitor, a dizer que nasci na Alemanha depois da primeira guerra, em um bairro pobre de Berlim e que estudei com dificuldade em uma escola pública. Você tudo pode, até me obrigar a falar o que não quero, pode até iludir o leitor com este artifício pouco sábio de que está criando um conto escrito pelo próprio personagem. O escritor é um deus, onipotente, eu sou apenas um personagem, que só pode ser ajudado pelo leitor que pode mais do que você, pois é só ele parar a leitura agora, não passar para a próxima linha e seu texto não vale mais nada. Muita pretensão a sua acreditar que o leitor quer saber o que faço neste trem durante a segunda guerra mundial.
Nada mais ele saberá a meu respeito, por isto lhe peço encarecidamente que não leia as próximas linhas, pois ele me obrigará a pensar em um longo monólogo o meu passado.
Lembro-me que em 1922 entrei para a escola politécnica, aonde fui um estudante destacado, principalmente porque sempre gostei muito de matemática. Sou magro e feio, o que me afastou das mulheres e até dos homens que me rodeavam. Além de tudo isto o escritor, por pura maldade, fez com que, em um dia chuvoso, eu fosse atropelado por uma charrete. O freio do cavalo atingiu meu olho esquerdo, que ficou irremediavelmente comprometido, tanto que eu uso este horrível tapa olho. Pior foi a perna que restou defeituosa me fazendo claudicar levemente para a direita. Por favor, caro leitor, interrompa aqui a leitura, não permita que este celerado continue a me compor tão desgraçado na sua mente, leia o jornal de hoje, quem sabe a parte de esportes ou de cultura. Seja feliz, abandone de vez este desgraçado personagem.
Já que foi inútil meu clamor, já que você me obriga a me submeter à vontade do escritor, tenho que confessar que servi feliz ao Reich e que usava com orgulho a suástica no ombro, confesso que me senti feliz quando Hitler colocou em meu peito a medalha por relevantes serviços prestados à pátria. O escritor esta lhe induzindo a acreditar que sou um nazista nojento, caolho, manco e covarde, que está neste trem vestido este velho sobretudo fugindo dos russos. Eu podia ser um surfista bronzeado de uma praia do Havai, um monge tibetano ou um médico brasileiro passeando pela beira da praia de Copacabana, mas este escritor...
Tem horas que me parece que a culpa é mais sua, infeliz leitor, do que dele. Seu gosto é duvidoso, sua submissão a vontade do escritor perniciosa, pois é a sua presença que justifica a minha criação. Uma mulher magra, com o rosto vincado pelo tempo acaba de subir no trem e sentar a meu lado, mas ele decidiu que ela é apenas uma personagem secundária, que terá seu vestido descrito apenas como a expressão : uma velha mal vestida, carregando uma bolsa rota com todos os pertences que lhe sobraram sentou-se ao lado do Sr....
Nem mesmo um nome ele me deu. Como você suporta isto? Como continua a leitura ? O que espera de um escritor deste nível ? Talvez você esteja esperando uma atitude minha, talvez queira saber se eu vou conversar ou não com aquela senhora ou me manter calado como um fugitivo medroso e desconfiado. Sim reconheço a cidade pela qual estamos passando, é Oberhof. Pronto, mais uma vez você se deixou submeter a vontade autocrática do escritor, que pode abrir o mapa, procurar uma cidade qualquer da Alemanha e lhe enganar com sua falsa sabedoria. Agora ele pode descrever as árvores que passam pela janela, falar de uma ponte na estrada, causar ou não um acidente com o trem ou com aquele cavalo que cruza a linha férrea. Ele pode decidir se dará tempo ou não de eu ultrapassar a Fronteira e me entregar aos aliados. Você não sabia que esta cidade fica perto da fronteira, que está dentro da Floresta da Turingia, que tudo isto ficou sendo Alemanha Oriental ? Ele também não, mas pode fingir ter cultura, pode até mesmo mudar a época e reunificar magicamente a Alemanha ou redividí-la depois de uma terceira e hipotética guerra. O escritor manda no tempo, no vento, na natureza, nos seres que compõe sua história, não deixe que ele mande em você, pare de ler.
Nada disto existe, e quem sabe um segundo de falta de luz pode por a perder todo o texto no computador. Pronto! ele acaba de salvar o texto. Nos resta, a mim e a aquela senhora que estava a meu lado mas que foi retirada inexplicavelmente do trem por uns policiais truculentos, que nenhum editor aceite publicar esta história, e por derradeiro que ninguém queira lê-la.
Os minutos de espera pela fronteira estão me fazendo suar frio. Os documentos que trago na pasta serão úteis aos aliados, mas o escritor não lhe esclareceu ainda como sabe o que vai acontecer no futuro. Como ele sabe que estou perto da fronteira entre as duas Alemanhas se a guerra ainda não acabou ? Fique alerta amigo leitor, leia com atenção perceba os erros que ele comete enquanto escreve. Não escreve por prazer ou com qualquer objetivo digno. Na verdade, ele quer apenas me fazer ridículo, vender mais alguns livros e enriquecer iludindo o público com suas histórias medíocres. Sinto uma forte dor no peito, logo agora que a fronteira se aproxima, era só o que faltava, este cidadão vai me fazer ter um infarte, sentir dores terríveis, me matar e escrever o que quiser a respeito nas minhas memórias. Melhor fez Machado de Assis que colocou o morto narrando a história ou Jorge Armado que matou duas vezes o pobre Quincas, mas também este aqui é um escritor medíocre que não pode ser comparado com estes outros dois.
Você esqueceu que até agora ele não escreveu nada de importante a respeito da história que parecia ter se proposto a narrar. Pronto! foi só alertá-lo e lá vem um parágrafo inteiro falando que caí morto no banco do trem, que o condutor percebeu e revirou meus bolsos sem nada encontrar, deixando-me caído enquanto corria para avisar ao agente de segurança. O passageiro do banco de trás abaixou-se e por sob o banco puxou a minha pasta até então oculta, certamente ele sabia que ela estava repleta de documentos a respeito dos armamentos alemães. Esta foi a forma discreta que este escritor encontrou para lhe deixar com dúvidas sobre a minha morte, sobre o meu passado de engenheiro do governo alemão e sobre as verdadeiras razões da minha fuga. Agora ele pode escrever o que desejar: substituir o enfarte por uma injeção letal aplicada pelo homem que agora discretamente remexe em minha pasta, torná-lo um agente alemão, da resistência ou mesmo um espião russo ou americano. Com poucas letras ele troca a nacionalidade, profissão ou mesmo caráter que qualquer um de nós, torna os documentos essenciais ou uma papelada inútil. Eu sabia que para lhe agradar ele ia resolver tudo: o homem é um agente russo, os documentos vão saltar com ele antes da fronteira, ele vai ter um papel importante na Alemanha Oriental e eu serei esquecido como um indigente qualquer no banco de um trem de fugitivos no final da guerra. Esta é oportunidade, o gancho como dizem, para ele encher o conto de personagens que ocupam o trem: judeus que perderam os pais, membros do partido que irão morrer ou enriquecer no exterior e até mesmo colocar um cão oculto dentro de uma bolsa...
Agora chega, mas chega mesmo, pois eu já estou morto, a guerra acabada, o trem sucateado, e o escritor realizado por tê-lo trazido até aqui, caro leitor.

Edgard Bessa

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