A Preferida (conto)
A preferida
No século XVI da nossa era. Anarkal, bela cortesã e favorita do grande Akbar, foi enterrada viva por ter traído o imperador com um dos seus filhos. História da cidade de Lahore - Paquistão.
Oito milhões quatro mil seiscentos e vinte um tijolos já haviam sido colocados na fortaleza da Rannikot, a milhares de anos o rio Induz se esgueirava pelo seu leito e já fazia duas dezenas de anos que nascera Anarkal, a mais bela das mulheres.
Akbar, o mais poderoso dos imperadores, reinava com mão de ferro e olhos atentos nas fronteiras e nas mulheres de seu reino. Benazir, sua quarta mulher, fora repudiada por não lhe dar filhos, Alamabade fora mandada a forca despojada de suas vestes por recusar amar certa noite o poderoso senhor. Anarkal reinava no coração e no leito do imperador, enquanto toda a corte cobiçava aqueles seios que riscavam as vestes transparentes. Todos temiam despertar o ciúme do imperador, pois conheciam a sua cólera.
Bakeber regressara como um guerreiro vitorioso, e todo o reino se fez em festa para receber o jovem filho do imperador e seu exército. Akbar dormiu o sono dos justos depois daquele dia de festa, pois tinha certeza de que quando fosse prestar contas a Ala, o misericordioso, seu reino ficaria bem entregue nas mãos de seu filho. Foram oito longos anos de guerra, sendo que no lugar do jovem que partira tenso retornou um homem maduro.
A alegria de reencontrar o filho cegava o imperador, mas o implacável Bakunir não deixou passar despercebidos os olhares de Anarkal para Bakeber. Aquela mulher jovem transpirava sensualidade, aquele jovem guerreiro transbordava virilidade. Bakunir sabia da influência da mulher que ocupava preferencialmente o leito imperial, reconhecia o carisma do filho primogênito, mas tinha certeza que seu senso de observação e sua feitiçaria o perpetuariam no poder...
O soberano envelhecia rapidamente, Anarkal era uma mulher atraente, Bakeber um filho estremado e cioso dos negócios do reino. Naquela noite estrelada Bakunir observava a chama sagrada que ardia no pátio do castelo, enquanto sua mente diabólica lia nas cores das labaredas o destino dos homens. Levantou-se lento, como se tivesse todo o tempo do universo sob seu controle, dirigiu-se em passos vagarosos até o quarto do príncipe e quedou silente à porta.
O murmúrio denunciador indicava que Anarkal ardia de prazer nos braços do filho do imperador. Nas chamas do archote que trazia nas mãos vislumbrou seus espasmos frenéticos enquanto sua mente pendulava maliciosamente entre as várias formas de usufruir daquele segredo. Ele também desejava aquela mulher... Quantas vezes sofrera solitário ao ver a porta do imperador fechar-se após a entrada da fêmea. Aguardou distante a saída da adúltera do quarto do príncipe para a interpelar com seu olhar no corredor. Seus olhos fulminaram a mulher flagrada em traição enquanto com seu dedo indicador a boca ordenava silêncio. Virou-se lentamente, apagou a chama do archote em uma vasilha d’água e saiu sem dizer palavra.
Anarkal foi deitar-se ao lado do imperador, sentindo ainda o calor do corpo de Bakeber. Sua mente, no entanto, não podia se afastar da visão do bruxo a pedir silêncio, sentindo que sua vida se apagaria como a chama dentro d’água. Amanheceu febril, o imperador mandou chamar o feiticeiro aos seus aposentos para que este afastasse os maus espíritos que de sua amada.
Bakunir interrompeu o ritual pedindo ao imperador que se afastasse. Agora ele tinha em suas mãos aquela mulher e seu segredo, não guardando um só momento antes de se locupletar disto. Anarkal odiava o bruxo, único homem que fazia sombra ao seu poder junto ao imperador, e resolveu, naquele momento, desafiá-lo, acreditando que teria Bakeber ao seu lado. A negativa da mulher ele não opôs resistência, apenas passou-lhe as mãos sobre os olhos que se fecharam por um momento. Ela continuava deitada, já sem febre, quando ele levantou-se lentamente dizendo: sua vida se apagará como a chama ao ser imersa em água, seu debater será inútil e seus gritos inaudíveis.
Antes da reunião do conselho o imperador, como de hábito, recebeu Bakunir em audiência privada. Com seu olhar fixo e seu tom inflexível o bruxo hipnotizou o rei, e colocou em sua mente idéias terríveis. Ao despertar do transe o imperador mandou chamar a seus aposentos o chefe da guarda, ordenando-lhe que fosse escavado um profundo poço no bosque próximo ao palácio, em seguida iniciou a reunião com os conselheiros. Seu filho foi o último a se retirar, ouvindo de seu pai as seguintes palavras: “meu filho um dia tu terás meu reino, mas nunca mais terás a minha preferida.”
Temerosa de reencontrar Bakunir, Anarkal não deixou os aposentos reais naquela noite. Despertou com beijo do imperador, tomou seu café de rainha e preparou-se para o passeio matinal no bosque. O rei silente a acompanhou naquela manhã de sol. Já no bosque ela se viu agarrada pelos soldados da guarda pessoal do imperador. Sua garganta não conseguiu emitir nenhum grito ou dizer qualquer palavra, sendo que sob o olhar impassível do soberano foi enterrada viva. Quando a terra já lhe havia coberto a boca, seus olhos ainda pediam clemência. Ao tentar olhar o céu do fundo do poço Anarkal encontrou apenas os olhos de Bakunir, e nos olhos dele viu a chama do archote se extinguindo na água.
O rei mandou que o local fosse salgado para que não nascesse ali nenhuma árvore. O bruxo com seus poderes aprisionou a alma daquela mulher na chama sagrada do castelo, obrigando-a a arder sob seu olhar pela eternidade.
Edgard Bessa
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